segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Ateísmo como descrença X ateísmo como crença

[Postado originalmente em 13/08/2012. Ressuscitado em 30/10/2017]

Já apontei no blog a diferença entre os ateus e os neo-ateus (ou ateus militantes), mas é bom retornar à questão, especialmente para evidenciar a natureza enganadora do termo “militante”. O ponto fundamental é o seguinte: ateísmo (normal) se define pela ausência ou negativa de uma determinada crença; neo-ateísmo se define por uma crença (ainda que disfarçada de ceticismo).

Resumidamente, um ateu normal é quem:

(i) não acredita na divindade e

(ii) questiona tal crença com base em aspectos que lhe pareçam mal explicados, contraditórios, não-convincentes, etc.

Ou seja, o que define um ateu normal é o que ele é incapaz de crer em algo (i.e. na existência do divino). Não importa se o motivo dessa não-crença é derivado de uma investigação racional da questão, de uma desilução com a religião, de uma revolta moral contra a maldade no mundo, do desejo de ir contra a maioria, da preguiça investigativa etc).

As motivações psicológicas podem ser as mais diversas. Por exemplo, em épocas passadas, o ateísmo estava mais relacionado a uma posição imoral ou amoral quanto à vida. Hoje em dia, temos a situação inversa: o ateísmo é, muitas vezes, uma reação moral contra o mal na sociedade.

Também não importa se o questionamento em (ii) é feito apenas para si ou para algum debatedor ou algum público. Em outras palavras, para ser um ateu normal não é preciso ficar caladinho, na sua, sem jamais expor sua opinião negativa sobre o teísmo. O que caracteriza o ateísmo normal é a negativa (ativa ou passiva) de uma crença, não a ausência de uma posição militante, propagandista.

O ateu militante, por outro lado, não se define por aquilo em que não crê, mas por aquilo em que ele, de fato, crê. O ateu militante acredita em, pelo menos, três coisas:

(i) é possível aos seres humanos (como um todo) alcançar um estado de perfeição moral e intelectual;

(ii) e, a partir desse estado, é possível construir uma sociedade perfeita e completamente justa (uma espécie de paraíso na Terra);

(iii) para a humanidade chegar a tal perfeição e construir tal paraíso na Terra, é necessário destruir todas as religiões do mundo, pois elas seriam o principal obstáculo a tão grandioso futuro.

Os ~livre pensadores~ que só repetem a mesma coisa

Da mesma forma, não importa muito quais tenham sido as motivações para alguém se tornar um neo-ateu. Ele pode ter feito algum tipo de investigação racional sobre a existência de Deus e chegado a uma conclusão negativa e, adicionalmente, se revoltado contra os que não chegaram à mesma conclusão; ele pode ter se desiludido com a religião, com a igreja, com o padre ou com a namorada que o traiu com o leiteiro; ele pode ter se revoltado moralmente contra a maldade e a injustiça no mundo; ele pode ser um adolescente de 17 anos que precisa da aprovação do grupo (ou do seu professor...) e adota uma postura de revolta pois ela está na moda (ah, não se fazem mais revoltados como antigamente!); etc.

Os motivos não são tão importantes porque, a rigor, as mesmas motivações podem levar a pessoa ao ateísmo normal, ao ateísmo militante ou mesmo para a uma religião. Tornar-se religioso por mero desejo de aprovação do grupo de que faz parte é tão questionável quanto tornar-se ateu ou ateu militante por desejo de aprovação do grupo. Esse tipo de motivo não depende dos méritos da posição filosófica/ideológica em si, mas da demografia.

Na verdade, diante das três características citadas acima, a questão sobre a descrença na divindade perde até importância, tornando-se secundária para a definição do ateísmo militante. A rigor, alguém pode, no fundo de seu coração, crer em Deus, mas tornar-se um militante neo-ateu por odiá-lo. Como não temos como ler a mente da pessoa para saber o grau de sinceridade de sua descrença em Deus (assim como não podemos descobrir o grau de sinceridade da crença de um teísta), o que realmente importa é a manifestação da crença na perfeição humana e na perfeição social. Por isso, alguns preferem chamar o neo-ateísmo de “humanismo” para evitar a difamação que tais fanáticos fazem do ateísmo ao se posicionaram como seus únicos representantes legítimos.

O que torna o neo-ateísmo algo desprezível em si, portanto, não são as motivações para adesão nem mesmo a sua tentativa de divulgação (a tal militância), por mais chata que ela seja, mas a natureza das crenças em que se baseia e que tenta espalhar.

A crença na perfeição do ser humano é absurda em si e só prospera pela total ignorância com relação à nossa natureza, às nosssas fraquezas, aos nossos erros, aos nossos... pecados (cuidado! Eu usei a palavra careta e abominável!).

A crença na possibilidade de tais homens perfeitos criarem, então, toda uma sociedade perfeita é ainda pior, pois envolve não somente a possibilidade de um método para o homem alcançar a perfeição, mas um trabalho de reengenharia social que submeta toda à humanidade (independentemente de sua vontade) ao método criado por algumas poucas mentes iluminadas.

A crença de que o paraíso na Terra só não foi alcançado ainda por culpa de um determinado grupo social (que, então, precisa ser exterminado) é o mesmo tipo de crença que motivou os nazistas a exterminar os judeus e os comunistas a exterminar os burgueses.

A propaganda neo-ateísta se baseia em grande parte em afirmativas exageradas sobre os crimes (reais e imaginados) cometidos por religiosos e/ou em nome da religião para criar uma indisposição das pessoas com o teísmo, ao mesmo tempo em que propõe a militância político-ideológica como a solução para todos os males, ignorando todos os crimes (infinitamente maiores) cometidos em nome das ideologias políticas.

A história nos mostra, porém, que a crença na perfeição humana e na possibilidade de construir um paraíso na Terra é capaz de produzir tragédias infinitamente maiores do que quaisquer crimes praticados por motivação exclusivamente religiosa.

1 comentários:

Tigre disse...

Dois poréns:

Ateu não é incapaz de acreditar numa divindade, já que todos foram crentes antes de serem ateus. Imagino, no entanto, que seja uma questão de escolha de palavras da tua parte mais do que a ideia de que falte esse potencial aos ateus (e alguns acreditam em alma, energias ou coisas tais, apesar de não acreditarem em divindades).

Antigamente, ateu não estava necessariamente ligado a uma posição amoral ou imoral, ao menos não diretamente. Antes, mais ou menos, do século XVIII (se não me falha a memória), ateu era alguém que na verdade não acreditava no deus do Estado (na teoria de Deus favorecida pelo imperador romano ou pelo patriarca de maior poder no momento, no deus favorecido pelo faraó em determinado governo, em Zeus ou em sua capacidade de intervenção na vida humana na Grécia antiga etc.). Portanto, o ateísmo era uma posição religiosa, contra o que - eu diria - forçavam a barra usando o termo "ateu". Até se implicava uma postura moral ao ateu, mas este não era realmente o cerne da questão.

E um acréscimo:

Acho tão ruim usarem o termo humanismo quanto as pessoas passarem a xingar e detestar o que elas acham que é o humanismo porque, de fato, odeiam ateus (apesar de isso me parecer um movimento mais comum nos EUA, n tendo chegado aqui com tanta força).

 
Nós confiamos em Deus; quanto aos outros, que paguem à vista.