domingo, 15 de outubro de 2017

Mudança lingüística (2): "nudez", "pedofilia", Sociolingüística e Eurística

Vamos continuar nosso esforço para compreender melhor a linguagem revolucionária. Dessa vez, façamos o exercício de descrever uma polêmica atual utilizando os recursos teóricos de uma corrente da Lingüística moderna, a Sociolingüística Variacionista, fundada por William Labov.

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Agora em 2017, um processo de mudança lingüística começou a se desenvolver no português do Brasil. Segundo a terminologia criada por William Labov, pai da Sociolingüística Variacionista, esse processo pode ser classificado como um caso de "mudança vinda de cima", ou seja, uma alteração surgida acima do nível de consciência dos indivíduos, por oposição às "mudanças vindas debaixo" (do nível de consciência).

Ainda pelos modelos da Sociolingüística, podemos apontar para o papel da hiper-correção, devido às semelhanças com o caso clássico do estudo da pronúncia do -R final na comunidade de Nova York, em que os membros da classe média alta (especialmente entre 30 e 40 anos) imitavam consciente e deliberadamente a pronúncia das classes mais altas (especialmente os mais jovens), em uma tentativa de ganhar, assim, parte do prestígio social e econômico associado a essas classes.

A mudança em jogo aqui, no português brasileiro, é de natureza lexical ou semântico-lexical. Envolve uma alteração drástica e inusitada no significado da palavra "nudez", especialmente em combinação com sintagmas preposicionados específicos como "na arte" ou "em museus".

Para uma parte da classe média alta brasileira, especificamente a que é exerce funções de "proletariado intelectual", a palavra "nudez" passou a ser usada para expressar o que o restante da comunidade sempre chamou de "abuso sexual infantil" ou de "pedofilia".



O extremo grau de artificialidade dessa alteração semântica, iniciada como uma estratégia retórica (ou melhor, eurística*) de desvio de assunto, confirma o caráter de uma mudança vinda de cima. (Qualquer semelhança com as estratégias lingüísticas descritas no romance "1984" é mera imitação).

Apesar de essa alteração semântica já ter assumido, dentro do grupo social do proletariado intelectual, um status de forma de prestígio, que, conforme Labov, aparece mais frequentemente em contextos de fala/escrita monitorada, para os demais grupos sociais, essa mudança semântica é completamente rejeitada, mantendo-se como uma forma extremamente estigmatizada, especialmente entre as classes sociais mais pobres.

Como naturalmente ocorre nesses casos, a reação do proletariado intelectual da classe média alta contra a fala das classes populares envolve elitismo e preconceito lingüístico. Por um lado, procuram reforçar, via hipercorreção, o uso da variante inovadora, com uma frequência bem maior do que ocorre entre as classes altas, onde a variante surgiu; por outro, tentam estigmatizar como "ignorantes", "desprovidos de cultura", "analfabetos" todos aqueles que não aderem ao novo padrão recém implementado pelas classes dominantes.

Este é um tipo de fenômeno também bastante conhecido na literatura sociolingüística, em que a mesma variante lingüística pode assumir o valor de forma de prestígio e de forma estignatizada em diferentes segmentos da mesma comunidade de fala.

Por exemplo: é bastante comum que, em grupos sociais mais pobres, a variante considerada de prestígio pelas classes altas seja vista negativamente, enquanto variantes que são estigmatizadas pela elite econômica/cultural são vistas como formas ideais dentro daquele grupo social, fenômeno denominado na Sociolingüística como "prestígio encoberto".

Entretanto, o conceito de "prestígio encoberto" não descreve adequadamente a situação por completo, uma vez que a forma estigmatizada pelo proletariado intelectual da classe média alta (usar o termo "pedofilia" para o conceito de PEDOFILIA e usar "abuso sexual" para o conceito de "ABUSO SEXUAL") ainda é a forma mais aceita como ideal de prestígio da maioria esmagadora da comunidade lingüística, enquanto a variante de prestígio para as classes altas (usar o termo "nudez" para os conceitos de PEDOFILIA e de ABUSO SEXUAL) só alcançou esse status elevado em um grupo social bastante restrito, embora com grande poder de imposição da variantes sobre outros grupos através de violência simbólica.

Mais estudos sobre o fenômeno, naturalmente, são necessários, para verificar:

  • a) Se o processo de mudança lingüística no proletariado intelectual da classe média alta, já quase inteiramente implementado, irá se consolidar no grupo social ou se recuará.
  • b) Se a nova variante ("nudez" como novo termo para "pedofilia") conseguirá se espalhar para outros grupos sociais/lingüísticos, vencendo a barreira que hoje existe por parte dos que não a consideram uma forma de prestígio.


Além disso, evidentemente, a descrição sociolingüistica capta apenas alguns aspectos do fenômeno. Para a compreensão total das motivações, dos objetivos e dos recursos empregados conscientemente para impor essa mudança, é preciso examinar vários outros aspectos.

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* A "eurística", grosso modo, é a falsa retórica. Consiste em estratégias não para o convencimento a partir de recursos retóricos honestos, mas por meio de estratagemas desonestos. Seguindo a classificação de Schoppenhauer, o uso dos termos "nudez", "nudez na arte" e "nudez no museu" no debate público que é, na verdade, sobre abuso sexual e pedofilia poderia corresponder atrês estratégias eurísticas: a homonímia sutial; b) manipulação semântica; c) e a fuga do específico para o geral.


Bibliografia indicada

LABOV, William. Padrões sociolingüísticos. São Paulo: Parábola, 2008. (Trad. de Sociolinguisic Patters. Philadelphia: University of. Pennsylvania Press, 1972).

SCHOPPENHAUER, Arthur. Como vencer um debate sem precisar ter razão: 38 estratagemas (Dialética Eurística). TopBooks, 2003.

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