domingo, 6 de agosto de 2017

A maldição do Homem de Ferro

[Este texto foi publicado originalmente em 05 de junho de 2010, tratando dos dois primeiros filmes do Homem de Ferro. Sete anos e vários filmes depois (incluindo Guerra Civil), ele ainda se aplica à trajetória do personagem]



O objetivo da guerra é a paz” (Aristóteles)

Como eu ainda não assisti o segundo Homem de Ferro, vou comentar o primeiro.

O protagonista do filme, todos vocês sabem,  é o Tony Stark, um empresário e um gênio da engenharia, cuja empresa fabrica armas para o Departamento de Defesa americano, etc, etc.

Embora não seja um idealista (muito pelo contrário, é um perfeito egocêntrico), Stark demonstra acreditar na importância de seu trabalho. Ou seja, na importância e necessidade de desenvolver para o seu país armas que o coloquem militarmente à frente dos seus inimigos, de modo a promover, se não a paz, ao menos a segurança. (Se isso é uma crença real ou apenas uma racionalização, é outra questão). Diz o personagem:

Dizem que a melhor arma é aquela que não precisa ser disparada. Eu discordo. Eu acredito que a melhor arma é aquela que só precisa ser disparada uma vez”.

Mas aí, todos sabem o que acontece. Stark sofre uma emboscada, é ferido quase mortalmente e vira prisioneiro de um grupo terrorista que quer obrigá-lo a fazer armas para ele. Prisioneiro, ele acaba vendo o “outro lado”. Não é que ele se confronte com exemplos de abusos cometidos pelas forças americanas (pois o personagem não vai virar um anti-americanista), mas ele percebe como as suas armas acabam caindo em mãos dos inimigos e servindo como instrumento de propagação do terror sobre populações inocentes. Cheio de remorso, Stark, então, resolve construir uma armadura e lutar contra etc, etc. Vocês sabem a história.

Mas vejam bem: essa armadura não é nada mais nada menos do que uma outra arma. Ela é simplesmente um passo a mais na corrida armamentista da qual ele já fazia parte e da qual se arrepende. Ela se baseia no mesmo princípio de que os bonzinhos têm que ter armas mais poderosas do que os vilões, se quiserem impedi-los.

Mais do que isso. O cúmulo da ironia é que (assim como ocorreu com as armas anteriores) o seu novo brinquedo, a sua nova arma, a sua armadura também cai no poder dos inimigos (!!!) e é usada para promover o terror! E Stark agora tem que, em nome da paz, tentar derrotar os que se apoderaram de sua mais recente arma.

 Monge de Ferro: a arma da paz cai nas mãos dos inimigos, mais uma vez.



A julgar pelo trailer do segundo filme e pelas informações de colegas que conhecem a história do personagem bem mais do que eu, essa situação simplesmente vai se repetir à exaustão na mitologia do personagem. Se o Superman está condenado a enfrentar Lex Luthor com um pedaço de kriptonita de novo e de novo, o Invencible Iron Man está condenado a enfrentar continuamente inimigos que se apoderam de suas armas, sejam elas metralhadoras ou armaduras de super-heróis.

O personagem, entretanto, continua com o discurso de busca da redenção através do combate aos males provocados por suas empresas e simplesmente não percebe (e o público do cinema também não) a contradição de que, sob um discurso pacifista, a corrida armamentista simplesmente continua. [nota: Não! Eu não estou criticando a corrida armamentista. Ela é simplesmente um fato estrutural da vida humana]

Nada disso, entretanto, prejudica o desempenho do filme (que é bom, com uma excelente atuação Robert Downey Jr., perfeito no papel), desde que o filme seja visto exatamente como é: um bom entretenimento e não um tratado pacifista ou anti-militarista.

Afinal, há dados da realidade dos quais não se pode fugir: os inimigos já estão armados e continuarão se armando, gostemos disso ou não. E isso dá um motivo para pensar a todos aqueles que acham que, em nome da paz, as democracias ocidentais deveriam se livrar de suas armas nucleares, perdendo a sua principal arma de dissuasão contra as ditaduras que querem destruir... essas democracias.

Adaptando uma frase do filósofo Seo Madruga,

Infelizmente, o mal não é a guerra. É ter que guerrear.



Qui desiderat pacem preparet bellum
[Aquele que desejar a paz que se prepare para a guerra]
Publius Flavius Vegetius Renatus

Si vis pacem para bellum
[Queres a paz? Prepara-te para a guerra]
Cícero


2 comentários:

Tigre disse...

As maiores ironias, eu diria, não são essas, mas que (1) ninguém se incomode com o fato de que o roubo e a "corrupção de finalidade" das armas americanas seja o problema - portanto o personagem não vê NADA de errado, até o fim, na ação militar em si (bom, ele é o herói que vai vestir uma arma, então...) - e (2) o fato de que o roubo infinitamente repetido de suas armas não o faz pensar que, hmmm, talvez, produzir mais armas não resolva o problema - e isso é que não me parece passar para o público, nem para uma discussãozinha banal sobre outras soluções. Mas, como já foi muito dito (tanto no Em Metrópolis quanto nas revistas do Super-Homem), os heróis são conservadores, e isso também no sentido de que repetem um sistema de repressão autoritária daqueles que discordam de qualquer forma da sociedade que "defendem" - sejam estes psicopatas, como Coringa, ou revolucionários políticos que não atiram a primeira pedra, como Magneto (judeu revanchista, diga-se de passagem).

R. C. disse...

Eu não sei se é só o ponto de vista conservador/reacionário que conta aí. Há a questão prática de que o que a história (filme, quadrinho) precisa mesmo é de uma desculpa para cenas de ação.

Nesse sentido, até o filme “Mandando bala”, como Clive Owen, tem um herói que apesar de defender abertamente o fim da 2ª emenda e a proibição das armas, mas que é quem mais dispara e mata pessoas em toda a história. Em nome do entretenimento.

Mas mesmo assim concordo que ao menos a colocação da questão seria enriquecedora e um roteiro menos superficial devia explorá-la.

Embora eu propriamente ache que a questão de “roubos das minhas armas” seja super-estimada no filme. Quer dizer: tenho dúvidas se o roubo de armas é realmente o principal meio pelo qual os “inimigos” se armam.

 
Nós confiamos em Deus; quanto aos outros, que paguem à vista.