[Publicado originalmente em 17/03/2012. Republicado em 29/11/2017]
Gostem ou não, nós (seres humanos) somos animais morais e toda a vida moral humana pode ser resumida no equilíbrio delicado entre duas tendências opostas: o exercício da justiça e a prática da misericórdia, da compaixão.
A justiça, sozinha, não é capaz de produzir o bem. Tampouco a
misericórdia, sozinha, é capaz de fazê-lo. Aplicar a justiça em momentos
em que é necessário exercer a misericórdia muitas vezes resulta em atos
de injustiça. Da mesma forma, ser misericordioso em momentos em que é
necessário aplicar a justiça acaba sendo uma impiedade.
A tarefa humana é justamente aprender a identificar os momentos em
que é preciso fazer justiça (dar à vítima e ao criminoso o que eles merecem) e os momentos em que é preciso exercer a
misericórdia (esquecer a ofensa sofrida em nome da concórdia), examinando de modo adequado a gravidade e natureza da
ofensa, o sofrimento das vítimas, a ignorância do réu, o impacto na comunidade, etc.
Diante de uma simples tentativa de furto da sua carteira por um ladrão de rua, o que fazer: chamar o guarda para jogar o meliante na cadeia ou dar-lhe mais 50 reais para comprar comida? Não nos enganemos: não existe uma resposta aplicável a todos os casos.
No mundo ocidental, o modelo da justiça é uma herança do pensamento e do direito romano. Já a misericórdia é um valor herdado diretamente da cultura judaica, através do cristianismo. O ideal da justiça pode ser resumido na fórmula romana do “dar a cada um segundo o que lhe é de direito”. Já a misericórdia se revela na ordem cristã “de graça recebestes, de graça dai!”. Da filosofia grega, por outro lado, herdamos a ênfase na razão, a luz natural que nos auxilia no exercício da justiça e na prática da misericórdia.
Este é o símbolo da Justiça:
A mulher vendada, segurando uma balança e uma espada, é a deusa romana Iusticia. A versão grega da Iusticia romana é Têmis (guardiã dos juramentos dos homens) e/ou Diké (deusa dos julgamentos).
A estátua da deusa greco-romana não é usada em nossa cultura (em nosso sistema judiciário) por sermos todos pagãos, praticantes das religiões cosmológicas dos antigos povos europeus. Não usamos essa imagem por sermos devotos de Apolo, por oferecermos galos em sacrifício para Asclépio nem por realizarmos cultos em adoração ao imperador. Muito pelo contrário.
Usamos essa imagem (i) por sua beleza intrínseca; (ii) por reconhecermos a força dos valores que este símbolo expressa; (iii) em homenagem e honra à tradição cultural da qual descendemos. Usamos esta imagem para nos lembrarmos de dar a cada um o que lhe é de direito — inclusive aos nossos antepassados.
Este é o símbolo da Misericórdia:
(Atenção: na MINHA religião, este símbolo é proibido!
Portanto, não venham me dizer que eu estou militando em causa própria)
Esse é o símbolo que, em nossa tradição cultural, representa a compaixão, o desprendimento, o auto-sacrifício, o amor que dá sua própria vida pelos seus amigos. É o ponto de oposição e de equilíbrio à justiça impiedosa. É a representação dos valores que, ao longo de séculos, abrandaram a espada da justiça e criaram os direitos humanos.
Tanto o símbolo da Justiça quanto o símbolo da Misericórdia — ambos de origem religiosa — são amplamente usados em nosso sistema judiciário. Mas há alguns que querem deturpar as nossas leis e inventar uma proibição inexistente a esse tipo de símbolo nos espaços públicos. Ou melhor: querem inventar uma proibição seletiva destes símbolos, banindo completamente o símbolo da misericórdia, mas fingindo-se de cegos (sim, de cegos. Percebem a ironia?) para o símbolo da justiça.
Eles alegam que se sentem ofendidos, enraivecidos, encolerizado toda vez que vêem o símbolo da misericórdia e que, por isso, o governo deve bani-lo em nome da... intolerância (ahn?!). Não duvido que eles se sintam assim. Mas o que o sentimento deles de ódio tem a ver com a tolerância? Absolutamente nada. A verdade é que eles são simplesmente incapazes de dar a cada um o que lhe é de direito e de dar de graça o que de graça receberam.