sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Símbolos da Revolução Russa (1): pornografia política e rumores sobre a monarquia

Neste ano de 2017, completam-se cem anos da Revolução Russa de 1917, que abriu caminho para os regimes políticos mais violentos e sanguinários da história humana.

Este pretende ser o primeiro de uma série de postagens sobre o papel dos símbolos e da linguagem nos movimentos revolucionários em atuação naquele momento da história russa. Aviso: Essas postagens não terão o perfil de textos plenamente desenvolvidos, mas de conjuntos de notas feitas a partir da leitura de bibliografias sobre o tema.

Esta primeira postagem é baseada no texto "The Desacralization of the Monarchy: Rumours and the Downfall of the Romanov", dos historiadores Orlando Figes e Boris Kolonitskii, publicado no livro "Interpreting Russian Revolution: The Language and Symbols of 1917".


A dessacralização da monarquia: rumores e a queda dos Romanov

Rumores e revolução

- A monarquia russa tinha seu poder baseado em autoridade divina. Em sua propaganda, era mais do que o “direito divino dos reis”; o czar não era só o governante ordenado divinamente, mas um deus na Terra.
Capa do livro "Interpreting Russian Revolution".

- Colapso da crença na autoridade monárquica foi provocada por dois eventos: i) o massacre do Domingo Sangrento em 1905; ii) e os vários rumores de corrupção sexual e traição na corte durante a I Guerra Mundial.

- Rumores desempenham um papel importante em todas as revoluções; e desempenharam na Revolução de Fevereiro.

- Os Romanov também atribuíam papel importante na sua queda aos rumores espalhados contra eles.

- Rumores espalham informação (ou desinformação) vital; criam uma atmosfera e ajudam a organizar as pessoas nas ruas; são amplificados pelos medos e preconceitos da multidão; e podem pressionar a coroa a ações decisivas que, em outros contextos, seriam evitadas.

- Historiadores da Revolução Francesa têm demonstrado que a fofoca sexual e a sátira pornográfica destruíram a autoridade da monarquia Bourbon. A decadência sexual da família real (a libido incontrolável de Maria Antonieta e a impotência do rei) serviam de metáfora para a degeneração moral e política do antigo regime.

- Algo semelhante ocorreu com a imagem dos Romanov, ainda que a pornografia tenha sido muito mais branda do que a da Revolução Francesa.

- Contribuiu para esse processo a relativa repressão ainda existente sobre as publicações na Rússia, como as penas existentes para a difamação do czar.

Panorama geral

- Versos e cartões pornográficos circulavam de mão em mão.

- Exemplos de textos: “O diabo santo”, “O santo inquieto e o ladrão de cavalos”, “Os segredos dos Romanov”, “Vida e aventuras de Gregori Rasputin”, “A imperatriz e Rasputin”.

- Exemplos de rumores: Gregori Rasputin (místico que se tornou curadeiro oficial da família Romanov e ganhou influência na corte) seria o verdadeiro pai do herdeiro do trono e seria o verdadeiro governante do país.

- Após a Revolução de Fevereiro (que levou à abdicação do czar), os jornais publicavam trechos dessas histórias sobre supostos casos entre a imperatriz e Rasputin.

Representação da
imperatriz russa com Rasputin
- Havia cartões com a imperatriz nua no Rasputin; peças satíricas como “As orgias noturnas de Rasputin” eram encenadas e tinham grande público, inclusive de soldados. Muitos soldados liam esses textos e viam as peças.

- Em 1917, a pornografia política se tornou bem mais intensa do que em anos anteriores.Esses rumores se tornaram quase a versão oficial dos fatos que levaram à queda da monarquia em fevereiro.

- Filmes como “Os segredos dos Romanov”, “A história secreta de Ballerina Kshesinskaya”, “A vergonha da casa dos Romanov”, “Traidores da Rússia”.

- Sensibilidade russa não acostumada a esse erotismo vulgar já presente e comum em alguns ambientes ocidentais.

Primeiro tema dos rumores: corrupção moral

- As histórias de corrupção sexual na corte serviam de metáfora para a condição decadente do regime Romanov. A imperatriz era acusada de adultério; vários amantes e várias libertinagens lhe eram imputados; mais frequentemente, ela seria amante de Rasputin.

- Censores militares se preocupavam com os efeitos dos rumores sobre o moral dos soldados. Os rumores eram cridos pelo povo comum e pela alta sociedade. Oficiais diplomatas estrangeiros aliados criam e havia até quem afirmasse ter provas disso.

- Anna Vyrubova, dama de companhia e confidente da imperatriz, era retratada como participante das orgias com Rasputin. (A Comissão Extraordinária de Inquérito, montada após a Revolução de 1917 para investigar as acusações de traição, a submeteu a exame médico de virgindade, que comprovou que ela era virgem; a comissão também concluiu que ela era ingênua e pouco inteligente para ter influência sobre a imperatriz, o que a fez ser poupada da prisão).

- Os efeitos desses rumores: manchar a imagem da corte, dessacralizar a monarquia, provocar a perda do respeito dos súditos.

Segundo tema dos rumores: Quem governa a Rússia?

- A falta de virilidade era um subtexto dos rumores e o segundo tema da pornografia política. O retrato do imperador como sexualmente impotente, que seria o motivo para a imperatriz cair nos braços de Rasputin, o colocavam como uma figura fraca, incapaz para liderar a família e a nação.

- Rumores de que a imperatriz era a verdadeira governante. Problema : sua origem alemã e o fato de a Rússia estar em guerra contra a Alemanha.

- Até diplomatas estrangeiros aliados acreditavam que a imperatriz era a governante real. Rumores diziam que ela preparava um golpe e até que planejava matar o marido; que planejava entregar a Rússia nas mãos dos alemães.

- Rasputin era tido como a força obscura por trás do poder, o czar não-oficial. Oficiais, dignidades e generais expressavam a mesma opinião sobre Rasputin como o “chanceler”, ajudando a confirmar os rumores perante as classes populares.

Representação de Rasputin manipulando o imperador e a imperatriz

- A autoridade divina do czar era desfeita pelos rumores de que a imperatriz e Rasputin eram os governantes. Era a opinião comum entre a população e os soldados.

- O imperador seria fraco, impotentes e alcoólatra, uma figura patética que não correspondia ao ideal patriarcal e monárquico. Os sentimentos anti-monarquia eram estimulados no povo a partir dos seus próprios sentimentos e ideais monárquicos sobre o monarca ideal.

Terceiro tema da pornografia política: Traição à nação

- O tema unificador dos rumores e das forças oposicionistas à monarquia era o da traição à nação.

- Rumores sobre a existência de uma facção obscura na corte, que buscava uma paz em separado com a Alemanha. Contribuía para isso: o grande número de nomes alemães na corte; os conhecidos sentimentos de Rasputin, contrários à guerra.

- A imperatriz seria uma espiã alemã, que conhecia os planos militares do marido; que comemorava a morte dos soldados russos e lamentava a morte dos soldados inimigos; que passava segredos militares à Alemanha.

- O primeiro ministro Boris Stürmer (russo e filho de russos, mas de sobrenome alemão) teria sido pago pelos alemães para deixar os russos morrerem de fome. Count Fredericks, ministro da Corte Imperial, teria concordado em vender a metade ocidental da Rússia aos alemães.

- Pessoas comuns que tinham o azar de possuir o mesmo nome de Rasputin eram vistos com desconfiança pelo povo. Até um atirador do exército, de sobrenome Rasputin, solicitou mudança de seu sobrenome, pois seus companheiros não o viam como confiável no meio da batalha.

- Investigações da inteligência britânica e de historiadores posteriores não encontraram evidências de colaboração de Rasputin com os alemães. Mas o ponto importante não é a veracidade ou falsidade dos rumores, mas sua capacidade de unificar e mobilizar o público insatisfeito com a monarquia.

- Os rumores de traição eram amplamente cridos em todos os círculos sociais. Até o czar era tido como traidor, e mesmo políticos acreditavam nesses rumores. Era crença comum que havia uma estúdio secreto de rádio-telégrafo dentro do palácio, de onde a imperatriz enviava informações aos alemães. Anos depois, os turistas que visitavam o palácio ainda perguntavam aos guias sobre a localização do estúdio.

- A Alemanha também se aproveitava dos rumores e jogava panfletos para as tropas russas, mostrando o kaiser apoiado por seu povo e a imperatriz russa nua, apoiada sobre as partes íntimas de Rasputin.

- Entre as tropas, havia rumores de que a imperatriz passava segredos militares, que garantia a libertação de prisioneiros militares alemães e sua volta para a Alemanha, para continuar a lutar contra os russos; de que ela convencia o czar a negociar uma paz em separado com a Alemanha.

- Os rumores eram catastróficos sobre o moral das tropas, principalmente após meses de suprimentos escassos. Até as autoridades militares acreditavam nos rumores; em uma visita da imperatriz a uma instalação, tentaram ao máximo esconder dela os documentos militares.

- Os aliados acreditavam que isso teria sido o motivo por trás da decisão do exército de não se opor aos planos de Guchkov de golpe no palácio nas semanas anteriores à Revolução de Fevereiro; e de sequer informar ao czar sobre esses planos.

O impacto revolucionário dos rumores

- Os revolucionários usaram muitos dos rumores em sua propaganda. Diante das acusações de espionagem e traição contra o coronel Miasoedov, o Comitê Bolchevique de Petrogrado declarou que “não havia traidores entre o povo russo... Todos eles estavam nos altos postos, dentro do governo, nos ministérios, nos salões dourados.” As facções liberais também estavam inteiramente inclinadas a espalhar e criar rumores de corrupção e traição entre a corte.

- As atividades da imperatriz e de suas filhas como enfermeiras, cuidando de soldados feridos em hospitais militares, teve uma aprovação pública inicial, mas consequências negativas posteriores. O trabalho comum também tirou a aura mística que era associada à família real e ajudou a dessacralizar a imagem da monarquia. 

- As enfermeiras, em geral, passaram a ser vistas como inúteis, que pouco tinham a ajudar, pela falta de conhecimento médico ou de qualquer outro meio de ajudar os feridos. Também passaram a ser vistas como objetos sexuais, inclusive pelo fato de que prostitutas passaram a trabalhar nas ruas em roupas de enfermeiras. 

- O que deu aos rumores o poder de uma crença unificadora na Revolução de Fevereiro foi o fato de serem endossados por muitos líderes da Duma, a assembleia legislativa, inclusive por políticos conservadores. Por exemplo: Miliukov terminou um discurso crítico aos abusos do governo com a frase “Seria isso burrice ou traição?”, o que, ao contrário de suas intenções, foi interpretado pelo público como um sinal da veracidade dos rumores de traição.

- A circulação dos rumores entre as classes altas também contribuiu para a sua credibilidade nas ruas. 

- Sem a atmosfera criada pelos rumores (feitos de fofocas, meias verdades, fatos e invenções, informações parciais envoltas em fantasias pela imprensa), teria sido impossível produzir o “clima revolucionário”

- Rumores sobre as “forças obscuras” (associadas especialmente a Rasputin, aos alemães, aos judeus e aos burgueses) como culpadas pelos problemas do país e da dinastia imperial circulavam amplamente entre a população.

- Os rumores haviam tido papel importante na Revolução de Fevereiro. As pessoas acreditavam no que ouviam, não no que liam. E interpretavam o que liam à luz do que ouviam. Os rumores ajudavam a organizar segmentos diferentes da sociedade e a uni-los contra a monarquia vista como corrupta e traiçoeira.

- Os rumores serviam para dar ao povo um senso de sua própria justeza. Ser contra o czar havia se tornado algo patriótico. “Agora que derrotamos os alemães internamente, vamos derrotá-los também no campo de batalha”. Esse senso de justiça era uma fonte de força e dava a confiança necessária para derrubar o mito da natureza divina e oniponte do czar. A ideia de que seria um pecado opor-se ao czar aparecia agora como ridícula .

- Os rumores se converteram em ações violentas contra a monarquia e seus símbolos. Histórias sobre tentativas de assassinato da imperatriz circulavam diariamente. Após a Revolução de Fevereiro, a monarquia tornou-se imediatamente “o antigo regime”, e a sua demonização e a destruição de seus símbolos foram meios vitais para legitimar e garantir a unidade da revolução.

- O novo governo e pela Comissão Extraordinária de Inquérito desempenharam papel importante para a manutenção da difusão e legitimação dos rumores. Mas o endosso a tais rumores era um jogo perigoso. Os bolcheviques utilizaram os mesmos tipos de rumores contra Kerensky e o governo provisório.

0 comentários:

 
Nós confiamos em Deus; quanto aos outros, que paguem à vista.