quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Uma gota de sangue, negro

[Publicado originalmente em 12/12/2010. Ressuscitado em 26/10/2017]

One-drop rule

Já ouviram falar da one-drop rule? Literalmente “regra da uma gota”?

Trata-se de um conjunto de antigas leis americanas que estabeleciam que a cor da pessoa não deve ser determinada pela sua real aparência, mas pela sua ascendência. A idéia é que, se a pessoa tiver “uma gota” de sangue negro (ou seja, um ascendente negro sequer), ela deve ser considerada negra, inclusive em documentos oficiais.

Isso quer dizer que, mesmo se uma pessoa tiver aparência branca (ou asiática ou hispânica, por exemplo) e praticamente todos os seus ascendentes forem também brancos (ou asiáticos ou hispânicos), ela deve ser classificada como negra devido a esse único ancestral negro que, por acaso, haja na família.

Essa classificação tinha uma grande importância na sociedade americana na medida em que, em alguns estados, seguindo a política do “separados, mas iguais”, a cor determinava se a pessoa podia ou não ter acesso a determinados locais públicos como restaurantes, escolas, ônibus, etc. 

Segundo uma matéria do Estadão, publicada no último dia 9 (dez/2010), um estudo feito pela Universidade de Harvard mostra que, apesar de tal lei não existir mais desde a década de 1960, essa concepção sobre raças ainda determina o modo como muitas pessoas classificam a cor das pessoas:
Os psicólogos da Universidade de Harvard descobriram que até hoje as pessoas tendem a seguir essa regra, vendo indivíduos descendentes de mais de uma etnia diferente não como igualmente membros dos dois grupos, mas pertencendo mais ao grupo considerado minoritário. (negritos meus)

A matéria no Estadão começa dizendo que essa realidade, apresentada como negativa, ainda persiste nos Estados Unidos apesar de grandes “conquistas” recentes como:

(i) o fato de Obama ser “o presidente do país mais poderoso do mundo”

(ii) e de Halle Berry ser “considerada uma das mulheres mais bonitas do planeta”.

A reportagem encerra citando a expectativa dos pesquisadores de que, com a eleição de Obama, essa concepção sobre a classificação das raças deve mudar.

O que nem a reportagem nem os pesquisadores parecem notar é a profunda contradição em que se metem. Todos esquecem que o próprio Obama só é considerado negro graças à idéia da one-drop rule, já que ele é filho de um homem negro e de uma mulher branca, o que faz dele tanto euro-descendente quanto afro-descendente. Assim como explicam os pesquisadores, ao invés de ser classificado como igualmente pertencente aos dois grupos, ele é visto como pertencente “ao grupo considerado minoritário”. Por quê? Resposta: porque é conveniente.

A diferença é que a classificação de Obama como exclusivamente negro não obedece a interesses racistas, mas a uma agenda politicamente correta de valor inverso, que dizia que qualquer pessoa que não votasse em Obama era racista.




Para fortalecer a contradição, também a própria Halle Berry é filha de um negro e uma branca, mas é considerada exclusivamente negra (uma classificação que ela nunca receberia na África, por exemplo) ou “afro-americana” ao invés de multi-étnica.

(No caso de Obama, entretanto, ainda há uma curiosidade psicológica interessante. Como diz a jornalista Ann Coulter em Guilty, tanto Barack Obama quanto a cantora Alicia Keys deliberadamente escolheram valorizar a identidade do pai — que os abandonou!!! —, enquanto rejeitam a identidade da mãe, que lutou para criá-los. Mas isso é outra história.)




Enquanto isso, no Brasil...


É importante lembrar que, apesar da motivação distinta, essa visão não é diferente da situação que temos no Brasil, promovida pelos movimentos raciais, segundo os quais todas as pessoas que têm algum tipo de ascendência negra, independentemente da cor real da pele, devem ser consideradas exclusivamente “negras” ou, no máximo, “afro-descendentes”. Notem que isso é bem diferente do entendimento tradicional do povo brasileiro, que naturalmente criou uma série de termos para se referir às situações multi-étnicas intermediárias. Termos como "pardo", "moreno", "escuro", "mulato" etc têm, claramente, o pressuposto de que é impossível (e desnecessário) classificar toda a humanidade sob apenas dois rótulos.

Dando um exemplo pessoal, em toda a minha vida escolar, quando se discutia racismo, sempre havia mais de uma pessoa defendendo que que todos os brasileiros, sem exceção, eram negros “pois todo mundo se misturou no Brasil”, uma idéia muito popular em Salvador, mas que demonstra um claro desconhecimento sobre a demografia de outras áreas do país.

Eu sempre achei esse tipo de visão uma tolice. É como se a raça branca significasse pureza e a raça negra fosse uma contaminação, uma sujeira, como uma espécie de lepra transmitida geneticamente: se você tem sequer uma pequena mancha negra na sua ascendência, você não seria “puro” o bastante para ser considerado branco. Por mais que essa idéia seja apresentada com uma retórica politicamente correta (como isso é possível?!?), eu a rejeito.

O fato é que, se antes a imposição da regra da uma-gota era feita por motivações racistas, hoje em dia ocorre a situação inversa: são acusados de preconceito e de racismo exatamente as pessoas que rejeitam a regra da uma-gota. Isso acontece porque os movimentos raciais têm o interesse de inflar as estatísticas sobre a população negra no Brasil, de modo a usá-las como instrumento de pressão para exigir, inicialmente, direitos iguais, e, depois, direitos desiguais e privilégios.

Todo movimento de minorias começa com a reivindicação de direitos óbvios, inquestionáveis, mas logo amplia-se na imposição de leis prepotentes, opressivas, e não raro absurdas. Começa na retórica da igualdade e termina na proclamação aberta no direito ao genocídio. (O. de C.)

Militante social Lisa Williamson, conhecida como "Sister Souljah",
defendendo o assassinato da população branca.



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ATUALIZAÇÃO: Agora, em 2017, já vemos um movimento contrário começar a ocorrer. Na campanha em defesa do estabelecimento das cotas racistas, todas as estatísticas apresentadas sobre a população brasileira seguiam a regra do one drop rule, juntando automaticamente todos os que se classificavam como "pardos" no Censo sob o rótulo de "afro-descendentes". Porém, nos últimos dois anos, com o sistema já plenamente implementado, o movimento pró-cotas vem se pronunciando cada vez mais para excluir os pardos do sistema. Há alguns meses, uma professora da UFBA, militante do movimento, estava abertamente exigindo que uma candidata a um concurso fosse excluída da candidatura via cotas, por achar que ela (a candidata) não tinha a pele suficientemente escura, apesar de ser sim afro-descendente e ser de uma família negra.

Adotaram a regra do one drop rule quando lhes interessava, para usar os pardos, mas agora estão tentando jogar fora esses mesmos pardos como uma mera ferramenta descartável.


2 comentários:

Anônimo disse...

Engraçado é ver esse vídeo mostrando uma criança branca se lambusando de LAMA dizendo que quer ser negro... Depois de ler um texto que se pretendia esclarecer acerca das nossas concepções de raça. Meio estranho, não?

R. C. disse...

Sim, o vídeo é para ser engraçado. Não, o texto não pretende “esclarecer” nossas concepções de raça. Quer é mostrar a bagunça dessas concepções. Assim como o vídeo.

 
Nós confiamos em Deus; quanto aos outros, que paguem à vista.